segunda-feira, 12 de julho de 2010



Dar a pensar…

.
«(…) o ganho de dinheiro, e de cada vez mais dinheiro, com a mais estrita abstenção de todos os prazeres simples, tão completamente despido de todas as perspectivas eudemonistas ou mesmo hedonistas é de tal modo considerado [no “espírito do capitalismo” do séc. XIX] um objectivo em si que em comparação com a “felicidade” ou o “proveito” do indivíduo parece algo de completamente transcendente e puramente irracional. O ganho é considerado como objectivo da vida do homem e já não como meio de satisfazer as suas necessidades materiais. Esta inversão dos factos “naturais”, se assim lhes quisermos chamar, sem sentido para uma sensibilidade simples, é manifestamente um leitmotiv do capitalismo, que se mantém alheio aos homens que não são movidos por ele. Mas, simultaneamente, ela encerra uma série de sentimentos que têm muito a ver com certas concepções religiosas. Com efeito, ao colocar-se a questão de saber por que deve “o homem fazer dinheiro”, responde Benjamin Franklin (…), na sua autobiografia, com uma citação da Bíblia (…): “Se vires um homem activo na sua profissão, ele tem a dignidade dos reis” [Sal., c, 22, v. 29]. O ganho de dinheiro é – na medida em que se processar dentro de formas legais – na ordem económica moderna o resultado e a expressão da capacidade profissional (…).

Com efeito, esta ideia particular, tão corrente nos nossos dias e, em boa verdade, tão pouco evidente do dever profissional (Berufsplicht) (…) é própria da “ética social” da cultura capitalista, tendo para ela, em certo sentido, um significado constitutivo fundamental. (…) A ordem económica capitalista dos nossos dias é um universo de grandes proporções, que os indivíduos encontram ao nascer, e que constitui para cada um deles, pelo menos enquanto indivíduo, um contexto que não se pode modificar e onde se terá de viver. Este cosmos impõe ao indivíduo, na medida em que se encontra inserido nas relações de mercado, as normas da sua acção económica. O fabricante que desrespeite reiteradamente estas normas é economicamente eliminado, tão infalivelmente como o trabalhador que a elas não possa adaptar-se ou que não o queira fazer é posto na rua, passando à situação de desempregado.

O capitalismo, que conseguiu nos nossos dias o domínio da vida económica, educa e cria assim, pela selecção económica, os sujeitos económicos – empresários e trabalhadores – de que necessita.

Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, trad. port. Ana Falcão Bastos e Luís Leitão (Lisboa: Presença/Ad Astra et Ultra S.A., 2010) 51-53.


Fotografias...


“Rio castanho #1”
(Mirandela, Julho 2010)
© Miguel Portugal



“Rio castanho #2”
(Mirandela, Julho 2010)
© Miguel Portugal

quinta-feira, 8 de julho de 2010


Leituras…

…do clássico (já com mais de um século) Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, trad. port. Ana Falcão Bastos e Luís Leitão (Lisboa: Ad Astra et Ultra, SA, 2010), obra funda-mental da sociologia e indispensável para compreender esse ethos, que nos forma ainda a vida, do capitalismo moderno.

O problema de que parte Weber é o de saber porque razão o capitalismo moderno se desenvolveu nos países protestantes e não tanto nos católicos. A sua tese é a de que há uma essencial relação entre o “espírito do capitalismo” e aspectos religiosos puros, que originaram a ética protestante e fizeram com os países em que dominava esta confissão religiosa tivessem superado os países católicos em desenvolvimento económico. O capitalismo moderno não aconteceu por questões meramente financeiras – v.g., um maior afluxo de dinheiro –, nem foi engendrado por «especuladores aventureiros e sem escrúpulos», como sempre houve em todas as épocas, mas sim porque um novo espírito (“espírito do capitalismo”) orientou a acção de homens devotos: «pelo contrário, foram homens educados na dura escola da vida, simultaneamente ponderados e audaciosos, mas sobretudo sóbrios e perseverantes, perspicazes e inteiramente dedicados à sua actividade, professando concepções e “princípios” rigidamente burgueses.» (p. 67)

A originalidade da tese de Weber consiste em afirmar que estas qualidades pessoais têm uma origem religiosa, no protestantismo, cuja consequente ética conduziu a um ascetismo secular (transformações essas integradas no processo de secularização, que Weber cunhou como “desencantamento do mundo”), ao contrário da ética católica que afastou o homem do mundo e o colocou no Além e via a acção profissional como algo de mundano e, portanto, afastado da graça. O protestante acreditava que, para agradar a Deus, glorificando-o, e atingir a salvação com a segurança da certitudo salutis, teria que responder ao seu calling / Beruf (“vocação”, “vocação profissional” ou “profissão enquanto vocação”), trabalhando árdua, constante e, sobretudo, eficazmente, cumprindo o seu “dever profissional” e gerando dinheiro, dentro dos limites da lei. Mas não sem escrúpulos, nem com o intuito de o esbanjar, evitando o consumismo, pois o puritanismo ascético das seitas protestantes (calvinismo, pietismo, metodismo, baptismo) implicava uma disciplina rigorosa que afastava o homem dos prazeres da carne, do luxo ou da simples fruição e acumulação de bens materiais.

Portanto, o que começou por ser uma disciplina férrea com o fito da salvação eterna deu lugar a uma organização sócio-económica racionalista, geradora de recursos possibilitadores de uma vida de bem-estar para a maioria, sobremaneira nos países mais ricos do norte da Europa e E.U.A., cujos indivíduos abraçaram uma ética protestante que valorizava o trabalho empenhado, esforçado e de qualidade.

A tese weberiana tem sido, naturalmente, muito discutida e até posta em causa. De qualquer modo, constitui actualíssima leitura em tempo de crise económica. Sobretudo, parece-me importante reflectir neste ethos capitalista: a inevitabilidade de viver sob uma sociedade liberal e capitalista não deverá incutir no indivíduo uma séria procura da sua vocação e um espírito de missão, um redobrado cuidado na forma como exerce (com qualidade) a sua profissão, que é uma forma de cooperar com os outros e, com os outros, tornar possível, gerando e gerindo recursos, uma vida melhor para todos? O capitalismo pode até não ser uma inevitabilidade. Mas talvez seja, globalmente, o menos ineficaz dos sistemas económicos para possibilitar uma vida melhor para todos e, portanto, talvez não seja mau ou sequer desumano – se adequadamente compreendido.

sexta-feira, 2 de julho de 2010



Dar a pensar…

.
«Lembra-te que – como diz o ditado – um homem de boas contas é senhor da bolsa alheia. Quem for conhecido por pagar as suas contas pontualmente pode a todo o momento pedir emprestado todo o dinheiro que os amigos possam dispensar.

Isso pode ser de grande utilidade. A par do trabalho árduo e da frugalidade, nada contribui tanto para que um jovem vença na vida como a pontualidade e a rectidão em todos os seus negócios. Por isso, não conserves o dinheiro que te foi emprestado nem mais uma hora para além do prazo a que te comprometeste, para que o ressentimento do teu amigo não faça que ele te feche a bolsa para sempre.

Um homem não pode negligenciar que as mais pequenas acções têm influência sobre o seu crédito. Se o teu credor ouvir as pancadas do teu martelo às cinco horas da manhã ou às oito da noite, ficará descansado durante seis meses; mas, se te vir à mesa do bilhar ou ouvir a tua voz na taberna quando devias estar a trabalhar, então irá reclamar-te o pagamento na manhã seguinte e exigir o teu dinheiro antes que o tenhas à tua disposição.

Isso mostra também que pensas nas tuas dívidas, permitindo que te reveles um homem tão escrupuloso quanto honesto, o que aumentará o teu crédito.
(…)
Tem o cuidado de não considerares como tua propriedade tudo o que possuis e de não viveres segundo este princípio. Muitas pessoas que têm crédito caem neste erro. Para o evitar mantém uma contabilidade exacta das tuas despesas e rendimentos. Se te deres ao trabalho de atender aos pormenores, isso terá consequências benéficas: descobrirás como pequenas despesas podem crescer, atingindo grandes somas, e verás o que poderia ter sido poupado e o que no futuro poderá sê-lo.»

Benjamin Franklin, “Advice to a young tradesman” (1748), in: Works, org. Sparks (Chicago, 1882) 85-89.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Errância política

A esmagadora maioria dos accionistas da PT votou favoravelmente diante da choruda oferta da telefónica pela Vivo. José Sócrates fez accionar a “bomba atómica”: o Estado impediu, através da sua “golden share”, o negócio. Sócrates alega "interesse nacional", para esta interferência, no mínimo discutível, no mercado. Se bem que a Vivo representa cerca de 40% das receitas da PT, também é relevante o facto deste encaixe financeiro poder resolver o problema das dívidas da PT e o problema da grande dificuldade de acesso ao crédito por falta de liquidez dos bancos.

A reacção internacional é claramente reprovadora da “mão demasiado visível” do governo de Sócrates, com o Financial Times à cabeça na crítica mais contundente:
.
.
Com este veto político do Estado, José Sócrates só precipita a PT – o que, pelos vistos, não irá contra o dito "interesse nacional" – para o risco de sofrer uma OPA da Telefónica!

Isto revela que Sócrates, na ausência de ideias claras sobre a forma mais equilibrada de combater a crise económica e financeira, decide atrapalhadamente por uma espécie de economia planificada, bem ao jeito socialista (para não dizer comunista), disfarçada de mão reguladora e supostamente interessada num difuso "interesse nacional". Quando o Estado interfere desta forma na liberdade do mercado só se vislumbra uma de duas coisas: ou o negócio era escuso e inequivocamente lesivo do interesse nacional ou o Estado, com este governo ao leme, gosta de controlar as grandes empresas e a economia, muito para além do desejável, pois não é nada benéfico para a confiança dos investidores. Não sei porquê, mas parece mais plausível a segunda hipótese.

Homossexualidade. 6. Contra os valores da família?

Um último argumento poderoso contra a permissibilidade ética da homossexualidade é o de que esta põe em causa os valores da família. A família é uma instituição social composta por dois progenitores e respectiva prole, em que os primeiros têm, para além da função reprodutora, uma função educativa determinante na vida dos segundos. Segundo este argumento, dois homens ou duas mulheres não poderão constituir uma família equilibrada – a homossexualidade colocaria em causa o valor da família, tal como, nesta linha de pensamento, o aborto, a pornografia, o adultério ou o divórcio, já que provocariam alterações estruturais, que, aos olhos de muitos, afectariam profundamente a estrutura e, concomitantemente, o valor desta fundacional instituição social.

No entanto, os activistas defensores dos direitos dos homossexuais propõem, precisamente, que sejam alargados aos homossexuais os direitos socialmente reconhecidos de constituírem família, através do casamento, da adopção ou da fecundação medicamente assistida. O contra-argumento é o de que os valores da família seriam, isso sim, reforçados, dadas as maiores possibilidades de constituição desta instituição social.

De qualquer modo, resta um problema relativo à educação dos filhos. Sabemos, através da Psicologia, que as crianças aprendem através da observação e imitação de modelos. Os papéis sociais de homem e mulher, como os papéis sociais inerentes às várias actividades profissionais são aprendidos por observação e imitação. Uma das questões que se podem levantar é a de que uma rapariga que crescesse no seio de um casal constituído por dois homens não teria um modelo feminino pelo qual apreender a feminilidade e o mesmo poderia acontecer com um rapaz que crescesse numa família constituída por duas mulheres (seria privado do modelo masculino do pai).

Esta parece ser a única objecção realmente importante à permissibilidade ética da homossexualidade por via dos valores da família: a família homossexual talvez não fosse uma estrutura familiar perfeita para as crianças. Mas ainda assim se poderia dizer que há muitas outras situações em que as circunstâncias familiares não são as ideias para as crianças. No caso, por exemplo, da fecundação medicamente assistida, os constrangimentos éticos que se levantam para um casal homossexual são praticamente os mesmos que se colocam para um casal heterossexual. Por isso, não há razões para tratar estes casos de modo diferenciado. E, no caso específico da adopção, podemos legitimamente pensar que seria realmente melhor para uma criança, do ponto de vista do seu desenvolvimento psicológico, crescer no seio de uma família constituída por um casal homossexual do que numa instituição de acolhimento, com todos os seus problemas característicos.

Há outras objecções muito comuns contra a permissibilidade ética da homossexualidade, com base nos valores da família, que, contudo, não têm fundamento racional. A mais comum, sobretudo em meios mais fundamentalistas religiosos, é a de que a homossexualidade é condenada na Bíblia: «Não podes deitar-te com homem como com mulher; é uma abominação.» (Levítico, 18:22). Muitos comentadores referem que esta e outras passagens da Bíblia não são assim tão severas para com a homssexualidade, se forem devidamente interpretadas. Além disso, o mesmo Levítico prescreve comportamentos que são hoje, aos olhos da nossa racionalidade, manifestamente arbitrários (v.g., proíbe a ingestão de gorduras, 7:23; proíbe uma mulher de ir à missa até 42 dias depois de dar à luz, 12:4-45; proíbe-nos de ver o nosso tio nu, o que considera uma abominação, 18:14,26; a barba deve ter uma forma quadrada, 19:27; entre outros).

Mas a questão mais fundamental nem é essa. A questão é a de que uma acção não pode ser considerada eticamente correcta ou incorrecta simplesmente porque alguém o diz ou algum livro, por muito importantes que o sejam, o prescreve. Se o que alguém diz ou o que, neste caso, está escrito na Bíblia não é arbitrário, então deve haver boas razões para o aceitarmos. Caso contrário, estaríamos a incorrer na chamada falácia de autoridade – argumento que nos faz aceitar a verdade de uma tese apenas porque foi defendida por uma suposta autoridade.

Assim, muitos argumentos são normalmente invocados para defender a impermissibilidade ética da homossexualidade, mas muito poucos expressam efectivamente boas razões para aceitarmos tal ideia. Mesmo os mais importantes – o de que a homossexualidade é contrária à natureza e o de que vai contra os valores da família –, apresentam fortes debilidades, quando não é clara a definição daquilo que seria conforme a natureza, nem como pode a homossexualidade contrariar, mais do que outras práticas menos atacadas, os valores da família. A não ser o argumento de que as crianças (mesmo adoptadas) poderão sofrer uma interferência menos adequada ao seu desenvolvimento psicológico harmonioso se crescerem no seio de uma família de homossexuais, dada a ausência do modelo feminino ou masculino, não se vê quaisquer outras boas razões para não admitir, como perfeitamente plausível, a permissibilidade ética da homossexualidade.
__________
Fontes (para tudo):
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, trad. port. F. J. Azevedo Gonçalves (Lisboa: Gradiva, 2004) 71-75.
Robert Feldman, Compreender a Psicologia, trad. port. Luís M. Neto et al. (Lisboa: McGraw-Hill, 2001) 361-397.
Brent Pickett, "Homosexuality", Stanford Encyclopedia of Phylosophy